O QUE É MEDICALIZAÇÃO?
Você sabe o que é medicalização? Não? Então saiba que você está incluído nesse processo, mesmo sem perceber.
Antes de explicar o que é a medicalização, primeiramente, é necessário diferenciar medicação e medicalização, visto que esses conceitos têm origem semelhante, porém significados diferentes.
De acordo com o Dicionário Aurélio, medicação é o “ato de medicar; tratamento mediante o uso de medicamentos”.
A definição do referido termo, segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), consiste em “produto farmacêutico, tecnicamente obtido ou elaborado, com finalidade profilática, curativa, paliativa ou para fins de diagnóstico”.
Por outro lado, o termo medicalização, que aparece, inicialmente, com Ivan Illich na década de 1970, vai além do tratamento com substâncias químicas e consiste no processo no qual problemas não médicos são definidos e tratados como problemas médicos, usualmente em termos de doenças e desordens.
Nesse sentido, medicação refere-se especialmente à substância química, ao medicamento prescrito.
Já medicalização se relaciona com o processo que envolve o destaque do saber médico sobre o aspecto psíquico, que ocorre, frequentemente, na prescrição e no uso indiscriminado e excessivo de remédios.

É inegável o destaque, na sociedade como um todo, do discurso médico-científico.
Este, é sustentado como uma das áreas mais capazes de tratar um paciente e, ainda, se ampara na suposta garantia de um saber absoluto e comprovável, a fim de restabelecer a homeostase do organismo.
Até este ponto é compreensível, pois o fator biológico existe, é importante ser levado em consideração e seria uma insensatez não reconhecê-lo.
A crítica realizada não se refere ao método da medicina em si, mas se relaciona à prática contemporânea que ocorre através do DSM e que envolve a prescrição de remédios – sobretudo os psicofármacos.
No entanto, tal aspecto biológico não é único e o que se percebe nos dias de hoje é a sua hegemonia, que aparece de forma sutil, ao preconizar que qualquer sofrimento psíquico se configura como uma reação física.
Ou seja, a causalidade é reduzida ao corpo biológico.
O tratamento então ocorre, geralmente a partir de uma intervenção no organismo, seja através de cirurgias e/ou por prescrições medicamentosas.
A partir disso, uma indagação se faz relevante: qual o lugar do psíquico mediante a essa definição de medicalização?

Podemos assinalar, inicialmente, que ocorre o apagamento da responsabilidade do sujeito diante de sua queixa.
O psíquico aparece de fora e não como parte integrante do tratamento.
A visão de Ivan Illich sobre a medicalização aponta para uma crítica ao imperialismo médico a partir do desenvolvimento industrial.
O autor considera que as pessoas se tornaram dependentes desse saber científico e a saúde passou a não ser mais uma propriedade do indivíduo, mas algo que poderia ser conquistado através dos cuidados médicos.
A medicalização emerge na cena moderna por meio de programas de higienização realizados na Europa entre os séculos XVII e XVIII, o que aponta para um viés de eliminação, de limpeza daquilo que está fora da ordem, fora do padrão.
Um exemplo da repercussão deste fato no Brasil foi o combate à sífilis, que teve como objetivo introduzir normas e padrões morais e comportamentais de acordo com um modelo de nação inspirado nos padrões europeus.
Pode-se fazer uma analogia com o cenário atual em que os sintomas são vistos como problemas que devem ser suprimidos e uma das vias para isso é através do consumo de psicofármacos.
Vale enfatizar também que a cultura e a época influenciam nos critérios estabelecidos para se considerar um estado físico como uma doença.
Ou seja, o que é considerado doença em uma época, pode não ser considerada em outra.
Por exemplo, na primeira versão do DSM, em 1952, a homossexualidade foi incluída entre os distúrbios sociopáticos da personalidade, como um desvio sexual envolvendo comportamento patológico.
Já atualmente, essa associação entre escolha sexual e patologia é rejeitada socialmente.
Para tanto, é importante sublinhar que o fenômeno patológico é, antes de tudo, um fato biomédico, um fenômeno político socialmente construído.
Isso aponta para a questão da doença como sendo uma realidade construída e o doente um personagem social.
Assim como a história, a doença, como fenômeno social, também é uma construção.
No que tange à relação da doença com um retrato da sociedade, é válido discorrer a respeito do conceito de normal e patológico para a Medicina contemporânea, sobretudo a psiquiatria, e para a psicologia.
Para o campo da psiquiatria, o adoecimento psíquico consiste na perda involuntária da faculdade normativa e associa-se com o que é estabelecido culturalmente, ou seja, os transtornos mentais e do comportamento compreendem o patológico e a cura seria a adaptação social.
A respeito disso, o psiquiatra e psicanalista Francisco Paes Barreto (2007) assinala que “se levarmos em consideração que o discurso normativo é correlato do discurso da moralidade, podemos pensar […] como uma versão contemporânea do tratamento moral, de Pinel, como o núcleo fundamental da terapêutica psiquiátrica”.
Isso tem relação se levada em consideração a origem da clínica psiquiátrica, que nasceu de uma última demanda propriamente clínica, mas de uma demanda social.
Ou seja, foi a própria sociedade que pediu para trancar os ‘loucos’ e a psiquiatria atende à isso prontamente.
A psiquiatria encontra nessa demanda uma forma de se incluir no discurso médico científico, pois não apresenta o modelo médico comum, que é o modelo causal.
Carece de um método que prove a causalidade do sofrimento psíquico, o que faz do tratamento uma prescrição de remédios que produzem efeitos para os sintomas e isso tem um grande impacto sobre a clínica.
Já para a psicologia, o patológico não se reduz apenas uma alteração no sistema homeostático, caracterizado como “corpo-máquina”.
Dessa forma, o que se propõe é uma reflexão do processo da medicalização que aparece sob várias facetas, não de modo a opor uma a outra, mas na tentativa de compreendê-las a partir de suas articulações.

A dicotomia existente entre o método da medicina e psicologia propicia essa compreensão, na medida em que o mal-estar é pensado na perspectiva do isso e/ou aquilo, ou seja, a causalidade do sofrimento não é reduzida apenas ao nível biológico ou psicológico.
Essa perspectiva aponta para o lugar do psicofármaco no tratamento psicológico e se embasa em não abandonar o sujeito às classificações, aproveitando, assim, os recursos de cada um.
Logo, a medicalização é uma temática árdua, desafiante e multifacetada e que, portanto, pode ser enfocada a partir de diversas perspectivas e ângulos.
A psicologia tem a contribuir para essa discussão na medida em que oferece base teórica e prática para entender esse processo, de modo a encontrar uma brecha para abordar o campo biológico a partir de outro registro.
Recomendo que você leia também: Psicofármacos: O Ser Humano Comprimido Em Um Comprimido.
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Fernanda Martins é psicóloga (CRP 04/45295), formada pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – campus Coração Eucarístico.
Bastante interessada pela temática sobre os psicofármacos, é idealizadora do projeto “Janela Psicológica”.
Sua proposta é tornar a psicologia acessível, rumo ao universo da mente humana por meio da janela – interna de cada um.
Atua na área clínica em Santo Antônio do Monte / MG e realiza atendimentos com crianças, jovens, adultos e idosos, além de desenvolver trabalho no âmbito da educação infantil na escola “Viver e Aprender”.
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